Vírus da gripe: por que todo ano temos uma luta (e uma vacina) diferente

Em meio à temporada da gripe de 2018 aposto que você já escutou por aí o seguinte:

“Já tomei a vacina ano passado! Não vou tomar este ano, não!”

Pois esse papo é mais comum do que deveria e a dúvida a que ele remete é: por que temos de nos vacinar todo santo ano? Ora, por que para outras vacinas, como a da poliomielite, basta uma dose para a vida inteira? Hoje é dia de entender essa maluquice que é o vírus da gripe. Ou melhor, que maluquice são os vírus. Ou os pedaços de vírus… enfim, vamos lá!

Estamos acostumados com a gripe. Desde criança já caímos de cama ou convivemos com familiares e amigos que contraíram a infecção. O curioso é que o vírus influenza, o causador da gripe, chama menos atenção (e tensão) da população quando comparado aos temíveis ebola, zika ou dengue.

Acontece que, para os pesquisadores e autoridades de saúde, o influenza preocupa mais do que qualquer um deles. O motivo? Ele já matou, continua matando e matará muito mais gente do que esses outros vírus. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, até o dia 16 de junho, foram registrados 3 122 casos de gripe no país, sendo que 535 foram fatais.

A, B, C… A, B,C…

Existem três vírus da gripe diferentes: os influenzas A, B e C. O centro das atenções costuma ser o A. O influenza B causa o mesmo espectro de doenças que o A, mas não provoca pandemias como o outro. Isso pode ser explicado pela menor variedade de hospedeiros: o B infecta apenas seres humanos e focas, enquanto o A pode afetar aves, suínos e humanos, o que contribui para sua disseminação. Fora isso, os dois são bem parecidos.

Já o influenza C possui diferenças mais significativas em sua estrutura e causa problemas mais leves. Ele também é mais estável que os outros e não sofre tantas mutações. Como vamos ver, essas mutações são a causa de todos os perrengues que enfrentamos com os vírus A e B.

Mas sempre que se fala nos vírus da gripe, as coisas não param no A, B e C. Há uma espécie de código associada aos agentes infecciosos. É assim que lemos ou ouvimos por aí H1N1 ou H3N2. Eles se referem a subtipos dos vírus. Para entender o que essas letras e esses números significam, veja a imagem de um influenza A abaixo:

Vírus da gripe

Agora faça de conta que o vírus é uma laranja cortada ao meio. O que estamos vendo é a parte cortada e o interior do influenza. Repare em duas estruturas que se repetem na porção mais externa do vírus. Elas são as proteínas hemaglutinina (azul) e neuraminidase (laranja). Prestou atenção nas iniciais de cada palavra? Então já tem uma pista do que o H1N1 representa, certo? Mas vamos devagar.

Células com memória

Imagine que, em um dia inspirado, você sai para jogar basquete durante a tarde e, à noite, parte para um campeonato de boliche. Ao segurar a bola de basquete, você sente que ela tem uma superfície áspera — parece que tem um monte de pequenas bolinhas ali. Quando toca a bola de boliche, por sua vez, você percebe claramente que ela é toda lisa.

Nesse comparativo, pouco importa o que tem dentro de cada bola. A informação que seu cérebro está recebendo pelo tato é a diferença de superfície entre elas. Digamos que o nosso sistema imune também funciona um pouco assim. Ele é craque em perceber diferentes superfícies em tudo o que encontra pela frente. Inclusive vírus. E mais: cada vez que ele encontra uma nova superfície, cria uma lembrança dela.

Na prática, isso significa que nossa imunidade é capaz de memorizar tudo com que se depara durante as nossas vidas. É assim que ela registra todos os micro-organismos que vão passando pelo nosso caminho. Que maravilha, né? E muito vantajoso em matéria de proteção. Mas isso nos ajuda a entender também o motivo pelo qual não temos uma memória tão permanente para o vírus da gripe.

É o momento de repararmos de novo naquelas proteínas da ilustração: a hemaglutinina e a neuraminidase.

Todos os vírus precisam infectar uma célula para conseguir se replicar. Para isso, eles precisam encontrar a célula certa e se conectar com ela. O influenza, em particular, costuma procurar as células das vias respiratórias (nariz, garganta, pulmões…). A hemaglutinina é a proteína viral que se liga às nossas células, criando uma espécie de ponte feita de correntes entre o vírus e a célula. Com a conexão feita, o vírus consegue entrar ali dentro para se multiplicar.

A neuraminidase entra em cena na hora que os novos vírus formados no interior da célula são liberados. Ao tentar sair da célula infectada, a hemaglutinina acaba se ligando de novo à superfície da célula hospedeira e o vírus acaba preso — imagine como se fosse um balão levantando voo mas preso a uma corrente na terra. A neuraminidase funciona como um alicate, que corta essa corrente e libera o vírus para sair dali e infectar novas células ao redor.

Como ambas as proteínas ficam à vista, são exatamente elas que o sistema imune reconhece. Mas nem todos os alicates e as correntes empregados pelos vírus são iguais. Se você só viu alicate de bico fino na vida, nunca saberia dizer o que é um alicate puncionador para drywall, não é mesmo? No corpo humano funciona mais ou menos assim.

Viva a diversidade?!

Deixemos a decoração da casa de lado e pensemos numa célula do corpo como uma pequena fábrica. Cada fabriqueta possui instruções codificadas em seu DNA e é responsável por produtos e serviços característicos. Os vírus são um pouco diferentes das células. Eles não possuem todas as peças para operar uma fábrica própria. Contam com apenas algumas instruções e ferramentas que são insuficientes até para que gerem outros vírus.

Primitivos, não? Calma lá! Ocorre que eles podem invadir, dominar e desviar a produção de uma fábrica (célula) para benefício próprio. Pior que isso: eles usam todo o maquinário dessa usina, não repõem as peças, acabam com o estoque e partem para a próxima. Por fim, o estabelecimento que foi assaltado muitas vezes acaba falido e fecha as portas.

Com o vírus da gripe não é diferente. Ele carrega consigo apenas o material genético que contém a receita para produzir novas proteínas (caso da hemaglutinina e da neuraminidase), bem como certas ferramentas que a célula hospedeira não tem.

Quando o vírus se replica no interior da célula dominada, uma das etapas é fabricar várias cópias do seu material genético. Para entender essa etapa, pense que o vírus tem de copiar um texto em código. Esse texto é longo e passa por oito páginas diferentes. Cada parte do texto tem códigos com as informações necessárias para cumprir todo o ciclo de vida do vírus. Uma das ferramentas que o vírus não dispõe é um corretor ortográfico. Assim, a cada 10 mil letras, ele comete um erro, em média.

Imagine agora o que aconteceria se esses erros ocorressem nas informações necessárias para produzir aquela corrente (hemaglutinina) ou o alicate (neuraminidase). A informação alterada ordena, por exemplo, que se preparem uma corrente de ferro com gomos a menos e um alicate com um bico um pouco mais fino. Essas ferramentas novinhas conseguem executar sua tarefa da mesma maneira, só que esse formato ligeiramente diferente traz uma novidade para nós, humanos: nosso sistema imune não as reconhece.

Pois esse fenômeno acontece na replicação do vírus da gripe. Embora ele seja o mesmo, pode apresentar hemaglutininas e neuraminidases com diferenças sutis. Graças a elas, o influenza consegue driblar nossa memória imunológica. É por culpa dessas pequenas mudanças que precisamos de vacinas novas contra a gripe todo ano. O imunizante contém a variação dos vírus devidamente inativados que são mais recorrentes naquela época.

O vírus da gripe, porém, não apronta só por aí. E se ele fosse capaz de emprestar outras ferramentas de seus amigos virais? E se conseguisse ter, em vez de uma corrente, um cabo de aço? Esse tipo de mudança mais acentuada demoraria muito tempo para ocorrer só por meio de mutações causadas por erros na cópia de genes. Que tal pegar emprestado ferramentas de outros subtipos do vírus da gripe?

Troca-troca viral

Se você observar de novo a imagem do influenza, verá que, em seu interior, o material genético mais parece um novelo de lã. O genoma desse vírus é composto de oito fragmentos desconectados de RNA (isso mesmo, ele não tem DNA!). Quando o vírus entra no núcleo da célula hospedeira (no nosso nariz, por exemplo), os fragmentos de RNA ficam dispersos. Nesse momento, você pode se perguntar: “Poxa, mas ele sabe exatamente como empacotar esses oito fragmentos para levar embora de lá?” E a resposta é NÃO.

Permita-me abusar mais uma vez de sua imaginação. Monte o seguinte cenário: você está diante de duas aves diferentes infectadas com o vírus da gripe. Um pato doméstico com o H7N3 e um pato selvagem com o H7N9. No convívio dos animais, os dois vírus se encontram em uma única célula e, na hora de empacotar aqueles fragmentos, rolou um rearranjo e surgiu um vírus novo, o H7N9.

Eis que esse H7N9 infecta, então, uma galinha doméstica, que já tinha um terceiro tipo do vírus, e no balaio dentro das suas células, surge o H9N2. O novo tipinho viral sofre algumas mudanças e, pronto, ganha a capacidade de infectar seres humanos.

“Ah, mas isso nunca vai acontecer”, poderão dizer. Lamento, mas foi o que ocorreu em março de 2013 na China.

H1N1, H3N2, H9N7… É assim que o vírus da gripe mantém sua identidade genética, mas consegue variar nas estruturas reconhecidas (ou não) pelo nosso sistema imune.

Muda o vírus, muda a vacina

Como vimos, o influenza pode se modificar, de uma forma mais sutil ou robusta, e dar origem a novas combinações virais. Devido a essas mudanças, precisamos criar vacinas diferentes de tempos em tempos para frustrar as variedades mais aptas a promover novos surtos. E é assim que todo ano temos uma nova fórmula para imunizar a população.

A ciência está em busca de uma vacina universal — e já existem testes nesse sentido. Essa fórmula pode ser chamada assim porque não é feita com base na hemaglutinina e na neuraminidase, a exemplo das vacinas atuais, mas, sim, em proteínas virais mais estáveis e menos propensas a variações.

Aqui no Brasil a vacina que está sendo administrada atualmente contém duas cepas inativas do influenza A (H1N1 e H3N2) e uma cepa inativada do influenza B — e há uma versão que contempla mais uma cepa do tipo B. Há todo um esforço para que tenhamos a vacina à nossa disposição. Por isso, não podemos deixar de nos vacinar e proteger nossos filhos. Há razões de sobra para não brincar com a gripe.

* Luiz Gustavo de Almeida é biólogo e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science na cidade de São Paulo, além de fundador e colaborador do blog Café na Bancada

Fonte: Abril

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